EM QUALQUER PARTE UM HOMEM
Em qualquer parte um homem
discretamente morre.
Ergueu uma flor.
Levantou uma cidade.
Enquanto o sol perdura
ou uma nuvem passa
surge uma nova imagem.
Em qualquer parte um homem
abre o seu punho e ri.
António Ramos Rosa, in "O Grito Claro", 1958
Faleceu em Lisboa, no passado dia 23 de setembro, aos 88 anos, o poeta e ensaísta António Ramos Rosa, um dos grandes nomes da literatura portuguesa contemporânea, autor de quase uma centenas de títulos.
Prémio Pessoa em 1988, recebeu ainda quase todos os mais relevantes prémios literários portugueses e vários prémios internacionais, quer como poeta, quer como tradutor.
Caro Leitor, veja Aqui, para recordar a vida e obra de António Ramos Rosa.
Poema dum Funcionário Cansado
A noite trocou-me os sonhos e as mãos dispersou-me os amigos tenho o coração confundido e a rua é estreita estreita em cada passo as casas engolem-nos sumimo-nos estou num quarto só num quarto só com os sonhos trocados com toda a vida às avessas a arder num quarto só Sou um funcionário apagado um funcionário triste a minha alma não acompanha a minha mão Débito e Crédito Débito e Crédito a minha alma não dança com os números tento escondê-la envergonhado o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente e debitou-me na minha conta de empregado Sou um funcionário cansado dum dia exemplar Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever? Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço Soletro velhas palavras generosas Flor rapariga amigo menino irmão beijo namorada mãe estrela música São as palavras cruzadas do meu sonho palavras soterradas na prisão da minha vida isto todas as noites do mundo numa só noite comprida num quarto só
In, O Grito Claro, 1958
Trabalhou algum tempo como empregado de escritório, experiência que o inspirou para este célebre poema, incluído no seu livro de estreia e que ainda se mantém atual.
Vivi tanto
que já não tenho outra noção
de eternidade
que não seja a duração da minha vida
In, Em Torno do Imponderável, 2012
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