dezembro 15, 2021

UM NATAL PERFEITO

Quando o viu na repartição de Finanças pensou que se tinha enganado. Mas logo ele lhe acenara, sorrindo, não havia engano. 

"Que sítio tão pouco poético", pensou. Durante estes anos todos sempre tivera a certeza de o voltar a encontrar um dia, mas nos sonhos o reencontro era sempre no Guincho e ao pôr do Sol.
"Aos anos que a gente não se via!", exclamaram ambos, e riram (...)
Virou-se para ela e disse-lhe que estava cheio de pressa, viera apenas requisitar os novos modelos de recibos verdes, mas um dia destes havia de lhe telefonar para combinarem um encontro com mais tempo. Ela estremeceu e pensou que se calhar iam estar outros 40 anos sem se verem e, num impulso arrisca, "porque não vais passar o Natal lá a casa?". Logo se arrepende, que disparate, ele há-de ter família, mulher e filhos, netos, quem sabe, e vai já desculpar-se quando o vê tirar rapidamente a agenda do bolso, e perguntar-lhe a morada. (...)



Durante toda essa semana ela só pensou no jantar de Natal. O jantar de reencontro, 40 anos depois. Um clássico. Todas as revistas femininas tinham, para ele, receitas infalíveis. Folheou-as vezes sem conta. Hesitou entre um peru assado com champanhe e um peru assado com castanhas, mas acabaria por se decidir por uma velha receita que lhe ensinara a avó que vivia nos Açores, que aproveitava os miúdos do bicho e os refogava com miolo de pão. Comprou toalha nova, naqueles tons de vermelho e verde que as revistas exibiam, com muitos ramos de azevinho no centro, e levou o requinte ao ponto de entrar numa loja resplandecente de cristais e porcelanas e comprar duas flûtes para o brinde com champanhe francês, e duas chávenas da Vista Alegre para o café. Nada poderia falhar.

Ele chegou tarde e a barafustar, "que chatice, nem nestes dias  aqueles gajos me dão sossego! Só sabem é pensar em aumentos de ordenado, em subsídios de Natal, mas quando toca a trabalhar, tá quieto ó mau!" (...) e, franzindo o sobrolho, pergunta-lhe "que perfume puseste?", mas antes que ela tenha tempo de responder já ele continua "é que a minha rinite dá logo sinal, daqui a pouco começo a espirrar que nunca mais paro!". Ela quer então abrir um pouco a janela, mas ele grita "nem pensar!", com o frio que vai lá por fora então é que a garganta lhe ficava apanhada de todo.

É preciso começar a conversar, o jantar de Natal tem de ser perfeito, e ela pergunta-lhe se tem ido ao cinema, mas logo ele a desilude, há anos que não sabe o que é um filme, agora é só o trabalho, "o trabalho e as chatices da vida, um colesterol altíssimo, só posso comer cozidos e grelhados e nada de carnes, álcool nem uma gota, café nem cheirá-lo, e descafeinado ainda é veneno pior para o meu fígado", diz. Ela tenta sorrir (o peru no forno, o champanhe no frigorífico, o lote de café escolhido a rigor) e avança, timidamente, que o Natal é diferente, no Natal toda a gente pode infringir as dietas, mas ele dá uma gargalhada, o que é que tem ser Natal?, para ele é um dia como os outros, há anos que não dá nem recebe prendas, isso é bom para o pessoal mais novo, por isso nem agora dá tréguas à dieta, "até porque a minha saúde não admite brincadeiras!".


Ela não diz nada, sorri apenas, sorri para as flûtes de cristal, para as chávenas de Vista Alegre, para o perfume, para o azevinho da toalha, para os conselhos das revistas. Irá, num instante, grelhar umas  postas de pescada que há-de descongelar no micro-ondas, beberão água mineral em copos de vidro grosseiro - e, de repente, fica com a estúpida sensação de estar, com ele, a festejar mais um Natal em 40 anos de um casamento perfeito.



Saboreie uma bica escaldada,
 e leia esta e outras crónicas de costumes da sociedade portuguesa, escritas pela Alice Vieira.






"Estou sempre a escrever a minha vida"





Alice Vieira nasceu a 20 de março de 1943 em Lisboa. É licenciada em Germânicas pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Iniciou a sua colaboração no suplemento juvenil do Diário de Lisboa com 13 anos e, a partir de 1969, dedicou-se ao jornalismo.
É uma das mais importantes escritoras de literatura juvenil tendo publicado cerca de 40 livros infantis e vendido cerca de um milhão de exemplares.
Em 1979 recebeu o Prémio de Literatura Infantil Ano Internacional da Criança, com o livro Rosa, Minha Irmã Rosa. Em 1983, ganha o Prémio Calouste Gulbenkian de Literatura Infantil pelo seu livro Este Rei que Eu Escolhi e, em 1994, o Grande Prémio Gulbenkian pelo conjunto da sua obra. Mais recentemente foi a candidata portuguesa ao Prémio Hans Christian Andersen.
Ultimamente tem-se dedicado à literatura para adultos, com o livro que hoje sugerimos, com Pezinhos de Coentrada, e com o livro de poesia Dois Corpos Tombando na Água, também disponíveis na Biblioteca Municipal.
Orienta regularmente oficinas de escrita criativa.
É membro da direção da Sociedade Portuguesa de Autores.






BOAS FESTAS





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