"A pista das palavras cruzadas era coisa como "atividade geralmente exercida por mulheres". Não me lembro da solução, mas nunca mais me esqueci da resposta do meu sobrinho, na altura com 9 anos: "limpar a casa". Raio dos putos, parece que nascem ensinados: chegam de dedo em riste para mexer nos ecrãs tácteis, e parece que têm entranhado no ADN que limpar a casa é função das mulheres.
Quando soube que o meu filho era rapaz, a primeira coisa que me ocorreu foi: como é que vou eliminar estes resquícios pegajosos de machismo do seu organismo? Quase todos os homens que amo e respeito, que considero e que se consideram feministas, têm comportamentos em que, aqui e ali, ainda ecoa essa herança. Há uma certa falta de preocupação e proatividade doméstica, como a peúga que se deixa num canto ou o prato que não se levanta da mesa. É mais forte que eles - o que não é desculpa. Atrás desses homens há uma história de mulheres invisíveis que, como por magia, faziam as peúgas e os pratos sujos desaparecer e aparecer de novo limpos e arrumados - tcharam!
Esta engrenagem silenciosa não só gerou homens-crianças como gerou mulheres-senhoras que, em pleno século XXI, ainda se chegam à frente porque, enfim, é mais forte que elas. Que arregaçam as mangas e dizem: "Se eu não fizer, ninguém faz". Que acham que estão a tomar as rédeas da vida doméstica, mas estão apenas a ser condescendentes como as outras antes delas. (...)
Se as mulheres soavam a mulheres, era porque precisavam de refletir a sua feminilidade, de fazer ouvir a sua voz. Se os homens soavam ao Universo, era porque nunca precisaram de pensar sobre a sua masculinidade. Podiam simplesmente percorrer os meandros da condição humana, ir mesmo lá ao fundo, chafurdar na filosofia à vontade - porque , entretanto, havia uma mulher que pegava nas peúgas e nos pratos e que os deixava escrever, que os deixava pensar, que os deixava ser. (...)
Tenho complexos de chamar a atenção dos homens à minha volta: apanha a peúga, é preciso fazer, é preciso tratar. Por um lado, provoca-me dores de crescimento ouvir-me dizer essas coisas, ver-me obrigada a ser pragmática e eficiente - menos interessante, portanto. Por outro, faz-me sentir encurralada num sistema de estereótipos: há muitos homens que ainda acham que as mulheres são umas chatas (porque não os deixam ser) e muitas mulheres que assumem essa função (porque não se permitem ser).
Mas quero crer que hoje sou mulher e sou humanidade. E penso: o que poderiam ter sido as mulheres que viveram para deixar os homens viver? O que poderiam ter sido as minhas avós, a minha mãe?
Espero que, daqui a uns anos, o meu filho pegue neste livro e ache esta reflexão obsoleta.
E, já agora, espero que depois o volte a guardar na estante."
Ana Markl
SER FEMINISTA É SER A FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
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